A INVENÇÃO DA VIDA
o Inferno

Cristovão está no Céu
– todos devem saber
que uma afirmação como esta
é muito arriscada
só que nada mais me importa
nenhuma afirmação
nenhum desmentido
só sei que a filha de Cristovão
desapareceu outra vez
não voltou para casa desde um certo sábado
eu estou a dizer
que essa mulher não me assombra tanto quanto antes
nem a sua dupla vida
nem a visão de si mesma
afastando-se dentro de um onibus
numa praça qualquer de Cracóvia
por isso penso
em Cristovão morando no Céu
e penso
em seu Decálogo
em seu Purgatório na terra
sei que nada será o mesmo
nem a cor vermelha
nem a cor azul
nem a cor branca
serão as mesmas
sei que mais uma vez
ela me abandonou
e outra vez ainda
ela voltará
eu desconfio até de quem sou
eu que desconfio até de seu nome
certa vez ela se chamou Veronica
outro dia mesmo era Julia
e depois Domenica
e repentinamente Valentina
já não compreendo mais os dias
já não consigo dormir
desde uma certa noite de março de 1996

eu permaneço na vigília
descanse em paz, Cristovão
o Purgatório

quando você está numa sala
desconhecida
as paredes pintadas de branco
a vida está lá
invisível
eu posso até duvidar
você pode também duvidar
mas ela está lá
há tantas coisas invisíveis
em que acreditamos
e estamos dentro delas
incorporados
vestidos
permanentemente protegidos
e indefesos
olho através de você
sua fé
sua falta de fé
sua coragem
seus desejos são invísiveis
e o frio
e a sede
e os seus mortos
tão vivos
também estão lá
como
quando lhe falta o ar
dentro de um sonho
possivelmente
numa sala desconhecida
as paredes pintadas de branco
as roupas de cama
brancas
essa cor que sempre muda
pela manhã
ou no decorrer do dia
e lá pelo meio da tarde você desperta
olha para a vida ao seu redor
é tudo tão simples
e aterrador
e ela continua invisível
mesmo imóvel
você está cada vez mais perto
eu sinto
esse seu silêncio
o Céu

ainda não descobri qual é a herança
um redemoinho me trouxe até aqui
este é o portal
foi o que você escreveu
numa carta
certa vez
e também que daqui para frente
levamos
somente
o que somos
de verdade
nada de corpo
nada de misericórdia
nada de ensinamentos
um molho de chaves bastaria
e algum lugar
uma casa quem sabe
e uma porta
que pudesse ser aberta
por uma lembrança
uma lembrança
bastaria
aquela onde sou nada
e somos tudo
e seria impossível recordar
das lutas
dos seres picados
por baionetas
das palavras vermelhas
deitadas no campo de batalha
antes de vir
eu perseguia um desejo
nele estavam contidas todas as carícias
que lhe devo
aquela no centro da sua alma
aquela outra
massageando seus pés
depois da viagem
sem a velha preocupação
com o tempo
o Paraíso

a você que me pergunta
o sabor de tudo
digo que perdi
o que chamaram de língua
a você
pequena
a outra
e a uma outra
aquela que ainda chamo de inteira
que no minuto certo
me perguntou
onde estou?
mesmo sabendo que não havia resposta
a você
a vocês
eu confesso
consegui encontrar
o lugar
a terra

Tudo já foi visto
Não espere mais do que duas ou três palmeiras
dançando como ancas
voando
presas na areia
bem perto do mar
Quase nunca ouvi vento assim
se bem que houve uma única vez
eu estava neste lugar
e vi um círculo se fechando
era o círculo da amizade
e dentro dele
o absoluto prazer que a amizade traz
Parecia que toda a ordem constituída
estava revirada
eu tinha a sua mão
não
não era sua mão de menina
era seu coração
era a sua boca
a sua boca
me sugava
o planeta ardia
e tudo estava tão revirado
quanto o seu corpo
e você buscava o mesmo prazer que eu buscava
e o meu pulso era o seu
Lembra que desejamos a inquietude
tanto quanto o conforto
e também
aquela experiência que queríamos e queríamos e queríamos
e sequer compreendíamos por quê
Estou lembrando da vida na Terra
como ela foi
e de uma noite na praia
e da fogueira no centro de tudo
e dos seres que se encontram
e se separam
sem despedida
Estou falando do trabalho humano
e da exasperação
e da devastação
De qualquer modo
eu gostaria que sempre lembrássemos
do prazer que encontramos
numa noite numa madrugada
Tenho quase certeza que foi assim
deve ter sido pela causa
de apreciar coisas como essas
que no sétimo dia
ele descansou
o fogo

Depois caminhei pelo lugar
que num outro tempo
foram as docas
Um mundo abandonado
como um cão
Nem um navio fantasma
balançava
O solo manchado de flutuação
uma cor aqui
uma outra mais distante
Eu caminhava
com as mãos para trás
entrelaçadas
sonhando
como nuvens espessas
sonham
com o frio
e com a neve
E uma dor muito grande
apareceu
como um animal marinho aparece
grande e feroz
após vencer o horizonte
o ar

Levei a mão à cabeça
O inferno acima
arremessava me arremessava
Lembrei que eu e o fogo e o ego
lutamos
por longas eras
Eu só trazia meus dedos
não mais que cinco dedos
enroscados
ao trapézio
Pensei novamente na queda
no paraíso em vida
nos palhaços
no purgatório
nas cambalhotas
no céu
na legião de mulheres abandonadas
e numa cabeleira sintética
vermelha
no centro do picadeiro
na bailarina e sua sombrinha
no cavalinho de pau
da infância
no tigre
e no leão desdentados
sonhando em suas gaiolas
num elefante em chamas
que banhava a si mesmo
Mãe de misericórdia
tudo crescia à minha volta
pedi por mais tempo
não de vida
nem de sorte
pedi por mais tempo
em suspensão
por mais um milhão de suspiros
um instante antes
de tocar a terra
a água

nunca compreendi o deserto
a multidão de olhos vagando pelo deserto
como fiz centenas de vezes
vaguei vaguei
eu fui um trem carregado de sinceridade
atravessando o Atacama
ou por aquele céu da Sibéria que me atingiu
certeiro
como um dardo
eu era o alvo
sempre fui o alvo
eu era tolo e fútil
tolo e fútil
não tinha como mudar
minha maneira de amar
não tinha como mudar minha maneira de andar
não tinha nada
nunca terei nada
além das lembranças
isso também é algo que já perdi
continuo vagando
como o éter
este é meu deserto
e minha fortuna
ela está aqui
uma lágrima
o infinito

os assassinatos
um após o outro
começaram numa madrugada de janeiro
eles me alcançaram definitivamente
ontem à tarde
durante uma leitura
estava tão concentrado
as janelas fechadas
o ar pesado feito guilhotina
e uma premonição
golpeando
é sempre bom repetir
que as janelas fechadas
tinham feições de fantasmas
os velhos fantasmas de sempre
os juízes
os velhos juízes de sempre
vociferando na tribuna
um deles disfarçado de mulher
mas seu timbre desmentia a própria condição
de mulher
ouço vozes
como já disse outras vezes
pouco distintas
é verdade
se bem que não alcanço a verdade
desde aquela madrugada de janeiro
foi quando os assassinatos
começaram
um após o outro
viajaram muito
os crimes as vítimas os criminosos
e as palavras
os juízes os fantasmas
e as sentenças
viajaram muito
até que me alcançaram
aqui
o verbo

Ecos do paraíso:
uma bomba atômica armada
no coração
É difícil acreditar que Ele descansa
enquanto corremos
enquanto ela sequer diz adeus
enquanto todos buscam por compaixão
enquanto a voz da poesia ainda voa
enquanto eu ensaiava ao piano
tão pequeno que as pernas balançavam
sentado na banqueta
ou girava
zonzo sobre a relva
Eu queria a escada
a corda
qualquer coisa que me elevasse
Meus pés nunca suportaram o peso
do chão
Ecos da sua voz
mãe de deus
você estava em tudo
o encanto era o nosso lugar de repouso
Subimos a montanha
encontramos água
multiplicamos o pão
e enquanto eu erguia nossa casa
você acendia o fogo
ali ao lado
Aquele foi nosso paraíso
Agora
meu amor
é tão frio
Estive bem perto de encontrar
a palavra exata
aquela que por certa
alcançaria seu centro
o silêncio

Estou bem distante da piedade
Sou miserável
e dissoluto
Não julgo meus acertos
mas meus crimes
são tão evidentes
que nem é necessário contá-los
Certa vez
estive próximo
muito próximo
de um templo reluzente
agora ele está envolvido por heras
e sombra
Já não soluço
não me arrependo
Estou nos braços da justiça
Sou velho
como ela sempre foi
A balança pende
Fecho meus olhos
A espada desce
o caos

Amor sobre amor
empilhados
até atingirem
a moradia
dos meus pais
Amor sobre amor
soterrados
muito abaixo
dos ossos
dos meus avós
Pele sobre pele
ao tempo
agarradas
Todas as miradas
se espalham
Todos os narcisos
olham para o céu
Céu sobre céu
e a terra
treme
arqueia
e geme
Homem contra homem
E as crianças
rastejam
sob o sorriso do sol
a paz

as melhores pessoas do mundo
estão perdidas
eu gostaria de dizer
que elas não têm para onde ir
mas é mentira
pensei até em convidá-las
para virem aqui
mas eu não tenho aqui
eu gostaria de chamar cada uma delas
pelo nome
dar um prato
um talher
meu coração
meus pés
mas é mentira que eu não tenho aqui
meu lugar é jerusalém
minha casa é a palestina
e as melhores pessoas do mundo
estão aqui
o frio

Agora mesmo ela disse que me odeia
Sinto tanto
mas o momento
é para desamarrar o tempo
preso ao meu pulso
buscar uma coberta
na montanha de lixo
um resto de comida
Querida
ódio pouco tem a ver com amor
assim como os dias
nada têm a ver
com a areia da ampulheta
Ontem foi a noite mais longa
do ano
encontrei o Gaspar
chutando
bolas de luz imaginárias
que ele diz
que se desprendem
das lâmpadas dos postes
Ele tinha uma garrafa
quase cheia
Os cantos todos estavam encharcados
não tínhamos onde sentar
demos uma volta na praça
o povo todo cambaleando
olhava pro chão
à procura de sobras
a noite

Somos feitos de pura imaginação
A cada instante
imaginamos a nós mesmos
em vida
A cada instante
a imaginação insinua
que somos
ilusão
estranhamento
eternidade
e nascimento
Não lembro de nada
mas na manhã
em que saí do útero
devo ter chorado
de desespero
Eu ainda não sabia flutuar
fora daquele universo
Eu ainda não tinha
lábios
que imaginassem seios
Então
eu era só incompreensão
de mim
e de como seria terrível
viver
neste outro lugar
que nos leva
a lugar nenhum
o calor

imagine o filete escorrendo
pelo seu braço
um filete escarlate
que se dilui na água
pode ser na água da banheira
o que é muito mais comum
mas pode ser também
na pia da cozinha
sobre os utensílios sujos empilhados
faz uma semana que você não se incomoda com nada
e agarrar a faca pode ser algo tão trivial
como olhar para a sujeira à sua frente
mas esse não é o modo certo
de morrer
há outros bem mais fáceis
um cervo quase voa pelo bosque
ele percebe o perigo
o caçador o cerca
o animal será morto
nós todos seremos
você já percebeu tudo
você conhece o mundo em que vivemos
você caminhou pelo bosque
mas isso já faz muito tempo
a ideia de morte ainda não lhe atravessava
mas havia sempre um caçador à espreita
lembra da noite em que a cordilheira
esteve sob seus pés
sua pernas balançavam do mais alto ponto da Terra
lembra daquela tarde em que caminhamos abraçados
em direção ao parque
que colorido era aquele com que você me olhava?
você foi embora
depois voltou
sinto muito
nunca mais estaremos juntos
eu lhe peço
suba até o último andar
lá sim
é o lugar exato
de olhar para cima
e de olhar para baixo
o dia

Um coração
tão lento
como um amor
que descansa
ao final de uma guerra
O seu amor é um navio
que transborda
fugitivos
homens negros
mulheres
de todas as cores
crianças loiras
indígenas
sonhando no tombadilho
anciãos
de olhos bem claros
também escapam
tempo adentro
Eles levam quase nada
uns rastros nas solas
dos sapatos
tão antigos
quanto a aldeia
de onde vieram
Em seu coração tão lento
ressoam os passos
dos nossos antepassados
eles estão bem guardados
os passos
e são como a lucidez
que se ausenta
e que retorna
a miséria

Ouça a voz
da chuva
Sofia
só ela protegerá
seus filhos
e sua beleza
Atente
para a carícia
Celina
ela está nas mãos
do inspetor do trem
enquanto
você cochila
A caçula
Ana
está perdida
ela traz um embrião
apertado
no ventre
sua casa
soluça
e treme
E não existe mãe
ou irmãs
não há nada
que possa afastá-la
do medo
a liberdade

Pouco restou
nada foi perdido
nem a paisagem
O contorno
de uma colina
e o desenho
do vento
rompendo
cada ano
cada eternidade
E há também
os dias
traçados a giz
cortados de 7 em 7
na transversal
Quase desisti
uma vez
mas voltei atrás
no momento
exato
Nada é inútil
estamos sempre
no momento certo
Por enquanto
oro
até que amanhã
bem cedo
possa eu ouvir
as portas da jaula
tocarem a música
a fé

eu viajo
eu escrevo livros
eu cozinho
têm noites
que eu choro
quase em silêncio
tenho dormido muito mal
desde que minha mãe
morreu
pra ser bem sincero
não durmo já faz
sete meses
também não consigo
me sentir bem
acordado
parece que certas coisas
caem o tempo todo
ao meu redor
coisas simples
como os dias
os dias
os dias
estão sempre caindo
ao meu redor
o ouro

Eu e meu pai
na mesma casa
Muitas vezes
sou bem mais velho
outras vezes
nem nasci ainda
Não importa o que eu faça
ele jamais julgará
Ficamos
em silêncio
na maior parte
do almoço
Ele cochila durante as tardes
Eu escrevo cartas
de amor
Ele reza ao entardecer
Eu quero morrer
com o sol
e voltar a viver
quando a noite
se levanta
ou cai
Estamos em silêncio
mais uma vez
Eu e a noite
Eu
meu pai
e essa saudade
que não passa
o sopro

Tudo que consegui
foi isto:
o sucesso
É verdade
meu corpo comemora o sucesso
Tenho uma casa onde morar
comida
água
traças perfurando
as letras dos livros
uma dívida
duas dívidas
Um instante
Sim
Voltei
Contabilizei
todas
Elas são inumeráveis
Poucos me cobram
Devo estar nascendo
novamente
É a sorte
a velha sorte
que sempre tive ao embaralhar
e cortar as cartas
depois de fechar os olhos
e esfregar
com muita força
minhas duas mãos
a melancolia

A verdade veio
como num sopro
Assim mesmo:
sem proteção
alguma
Caminhávamos em grupo
enregelados
A vida é uma sinfonia
Não olhe
para os lados
Não se importe
nunca
com o que ocorre
à sua volta
mesmo que todos os pássaros
em queda
manchem o chão
Mais uma vez
não tínhamos
como voltar
A verdade veio
como num sopro
Eu deveria parar
o tempo
e contar
como tudo começou
a música

Sempre que você se aquieta
fico olhando
Deve ser a paz
chegando
Aí seus olhos
se fecham
e surgem
as melhores cores
da vida
Elas flutuam sobre seu sono
Seu corpo
é tão frágil
e o silêncio é tão completo
que o ar fica leve
leve
como se não houvesse
mais
nenhum pecado
que precisasse
ser absolvido
o amor

Nenhum pecado
até aqui
Nossos medos repousam
Chegou o tempo
da perfeição
e de lembrar
e também de nunca mais lembrar
que fomos videntes
e tínhamos a fúria
muito antes
da desilusão
E que primeiro vinha a música
e em seguida o amor
Tudo que nos consumiu
descansou
Tudo que passou
sobre a pele
ficou por aí
como
escuridão e claridade
São estes os grandes artíficios
da vida:
a mágica
e a loucura
que se detêm
por tão pouco
e desaparecem
agora mesmo
aqui
à nossa frente
o despertar

Não há dor no mundo
há o mundo
Ele olha pela escotilha
Ele flutua
Os dedos
pouco se mexem
sob a imensa luva
Não existe o futuro
guardado
nas mãos
Vagas estrelas
Vagas fronteiras
Vago oceano
Vaga escuridão
Entretanto
há um sol
que pulsa
acima
muito acima
e abaixo
muito abaixo
Mais uma volta
e agora é noite
Neste preciso ritmo
Outra volta
ainda
e ressurge a manhã
Benvindo
ao lar
coração
o desprezo

Perceber o afeto
Perceber
que ele
está no lugar
mais distante
Certa vez
um coiote
estancou
frente ao lobo
Mesmo assim
ele perguntou:
para onde você está indo?
o medo

A vida passando
ao fundo
feito uma paisagem
depois do furacão
Não somente
a terra desolada
Não nós entre
nós mesmos
além do que somos
aparentemente
O que somos
está além
dos destroços
No chão
estará sempre
o que procuramos
por meses
agachados
com as costas arqueadas
Há um grão
aqui
e outro ali
Olha bem
o que encontrei
Este é o tesouro
esta é a lembrança
que faltava
em meu caderno
de recortes
E ao fundo
um sol
espiralando
como aquele
de van gogh
fugindo da tela
É desse modo
que eu espero
você chegar
a prece

Até que finalmente nos encontrávamos
Eu sempre cansado
os olhos esgotados
as mãos suadas
A espera
a espera tomara meu corpo por inteiro
Eu, retrato em tons de sépia
entre seus dedos
Ela me olhava durante muito
muito tempo
Eu prisioneiro
ajoelhado
no retângulo
do papel fotográfico
sem encontrar a saída
a solidão

Eu moro no fundo de um mar
A música que ouço é murmúrio
Meu jardim dança
em todas as horas
Os vizinhos aparecem
pelas frestas da gruta
que encontrei
quando pequeno
Há monstros sem nomes
que devoram gerações inteiras
Nada guardo
Caço apenas o que me mantem
vivo
o fim, o início

escrevo dor e enxergo a terra
em toda sua extensão
homens enlameados
carregando o peso do ouro
nas costas
e a fadiga dos lobos
e o descanso terno dos gatos
escrevo inferno e ele está aqui
sendo criado a meus pés
retorcendo as raízes
enterrando o ar
escrevo purgatório e ouço a voz
que é do purgatório
é ele quem grita poesia
poesia
poesia
o purgatório é um homem extenuado
escrevo céu e é o céu que traz noite
noite
e mais noite ainda
e traz a herança
o sossego
eu escrevo homem
e o homem está aqui
escrevendo paraíso
então eu imagino o lugar
onde estaremos
sem jamais perceber
escrevo terra e ela se levanta
sobe
sobe
e envolve a você e a mim
como num círculo
um tufão dentro de um círculo
que veste você
e que veste a mim
escrevo fogo
e o fogo é o encanto
é a flutuação
o fogo tem a mesma densidade
das nuvens
que sonham com o frio
e com a neve
escrevo ar
e desço
como um suspiro
desço
com a cabeça em seu colo
com as mãos em seus seios
escrevo água
e o incêndio se espalha
por todo o hemisfério norte
e os animais em chamas
correm
correm
para que eu possa continuar a escrever
infinito
e o infinito são as páginas de um livro
que me contam todos os assassinatos
deste e do próximo século
e eu caminho entre os mortos
eu escrevo verbo
e sua voz está lá
mãe de misericórdia
cercando tudo
até encontrar meu centro
escrevo silêncio
e a espada desce
justamente
quando estou de olhos vendados
e escrevo caos
e escrevo paz
e escrevo frio e o frio é o seu ódio
é o que você disse
que sentia por mim
é o que restou em mim
depois
depois
encontro o velho amigo encharcado
de álcool
e escrevo noite
e a noite é a imaginação
é tudo aquilo que faz
com que continuemos vivos
ou mortos
tanto faz
escrevo calor e o calor é lembrança
suicídio
desesperança
e reconciliação
eu escrevo dia e o dia é a ternura
é um coração que sangra
lentamente
no mesmo ritmo
de passos que se arrastam
para longe
de uma velha aldeia
escrevo miséria e a miséria
é um carrossel
é uma família inteira voando
sem conseguir pousar
e escrevo liberdade
fé ouro sopro melancolia
e a melancolia é a verdade humana
assim como quando
escrevo música
escrevo amor
essa palavra cheia de medo
de mágica e loucura
escrevo despertar e o mundo desaparece
com sua dor de mundo
ele não está mais em nenhum lugar
que não seja aqui
quando escrevo desprezo
quando escrevo medo
escrevo oração reza prece
escrevo solidão
OUTROS POEMAS
Tristessa

Ainda não sei o que dizer
só faço ler e reler Kerouac
espichado
no sofá do escritório
numa tarde ardente
apesar do frio
nos pulmões:
Tristessa com o rosto em farrapos:
Esperanza com o coração em frangalhos
vagando pela cidade do México
vendendo o corpo
por um grão de morfina
E você, meu amor
já escolheu onde morar?
Poderia ser aqui dentro
isto aqueceria esse ar rarefeito
Eu lavaria a Terra toda com seus olhos
aliás
que cor era aquela
quando você me olhou pela primeira vez?
E no entanto
mesmo com toda essa sua cor no olhar
penso muito num desastre
num acontecimento sem precedentes
um cataclismo no coração
em pessoas que aparecem e desaparecem
em coisas que se dividem
eternamente
Ainda não sei o que dizer:
assim somos
uns animais extintos:
almas penadas persistindo
num vagar de nuvens
Até parece que viver
nesta tarde
é uma missão para os loucos
Sinto que estou indo
levantando
levitando
o sanatório fica logo ali
dobrando a esquina
Eu viro a página
ainda não sei o que dizer
meu amor
parece até
que o fim do mundo
fica logo aqui
bem perto

estávamos sentados no final da tarde
o centro da cidade
quase ao lado
mas isto não tem importância
havia um abacateiro
em algum lugar
refiro-me à vida
a árvore estava em algum lugar
bem perto
foi daí que pensei num par de luvas de boxe
e no dançarino
e o dançarino ainda era o Cassius
havia o videoteipe
da luta
em algum lugar
não se enganem
a luta continuava
nós quatro na calçada
os copos nas mãos
os cigarros
alguém cantava?
não
ninguém cantava
a vida é tão boa
todos perdemos
todos vamos sair ganhando
ao final
só de passar por aqui
já valeu a pena
e do outro lado da rua
o abacateiro
e a lembrança do cheiro
acho que das tortas de maçã bem no final da tarde
não se enganem
o cheiro
era o mesmo
cheiro
como foi há pouco
quando descansávamos
mesmo sabendo de tudo
de tudo aquilo
que perdemos
de tudo aquilo
que nos aguarda
estava ficando tarde
as nuvens
o dançarino negro
as luvas de boxe
as nuvens
não me enganam
elas eram uns farrapos do vento
e o vento
acho que batendo no abacateiro
ou na torta de maçã descansando na janela
faz tanto tempo
mas
foi quase agora
ao lado do centro
do outro lado da rua
descansando
alguém disse
amigos
não se desesperem
caro Leonard

as sombras estalam na parede
o corredor que leva até a sala
treme
é o calor da tarde
que se encontra com o frescor da noite
tudo isto acontece
enquanto você recorda da pequena Frédérique
e mais uma madrugada avança sobre a Normandia
tenho andado quase calado ultimamente
mesmo estando entre as melhores pessoas
tenho sussurrado suas preces
sempre no final das tardes
lembrei da pequena Lu enquanto relia
seu poema
é bom estar entre as pessoas
mas mesmo assim eu sei o que é
estar só
só demais para um molho de chaves
só demais para um final de tarde
tão grande como este
só demais para minha arca de incertezas
e de lembranças
lembrei da pequena Lu
e de seus cabelos de ouro
que ela tecia
tecia e trançava antes de preparar a comida
e quando fazíamos amor
a música da cidade não nos alcançava
era um silêncio
só nosso
cercado de janelas abertas
eu também desejei salvar o mundo
naquele tempo de guerra
naqueles momentos de amor
divagações à beira do leito de minha mãe

mais de uma vez
estive
à sua sombra
mas eu era como o ser primordial
que voltava para a caverna
ao final do dia
trazendo um alimento
sem nome
um animal uma caça um troféu
sem nome
e inventava a fogueira
e minha sombra
multiplicada
era minha tribo
inscrita
nas paredes
sei dizer
que mais de uma vez
estive à sua sombra
amparado
mesmo quando
nada mais surtia efeito
e seu soluço
quase silencioso
brotava
e desaparecia
brotava
e desaparecia
e foram infinitos os dias
desde lá
de dentro
até aqui
e imagino
o que houve
desde aquele universo
tão
pequeno
até este momento
que de tão suave
dolorido
e completo
se esvazia e se preenche
mas ainda consigo me levar
até o fundo
da casa
é lá que me sento
e fumo meu cigarro
e olho para cima
a noite quase completa seu arco
viver é um pecado
estar vivo
é um pecado
por demais
doloroso
agora ensaio voltar para dentro
atravessando corredores imensos:
eis o infinito
eis ali a dolorida dobra do infinito
atravessando corredores imensos
e recolho a roupa
suja
de todos os cômodos
e preparo a comida
e volto pra sala
e escolho a música
e desisto
da música
e volto pra cozinha
fiz
mais uma vez
um excelente molho
e olho pela janela
imóvel

ali está ele
o infinito doloroso
assim, como o dia

uma casa
passamos velozes
por ela
deveríamos ter visto
o pintor de paredes
pendurado
e lá dentro
quatro ou cinco vidas
intensas
e provavelmente
o alarido infantil
dançando
como uma paisagem
e a velocidade
era como se fosse o dia insuflando-nos a boca
ou
quem sabe
fossem nossas bocas inflando o dia
mesmo que não disséssemos palavra
assim, nós
por um lado da estrada
os vidros abertos do automóvel
passando
havia uma escada
e apetrechos
coloridos
e pincéis
dois ou três heróis
escondidos por trás das cercas
brancas
pontiagudas
à espera do momento certo
para atacar
a brincadeira
era mais importante
o que deveríamos descobrir
à frente
foi por isso que não percebemos
muito bem
estávamos tão preocupados
com o tempo
ele
que sempre nos absorve
Sendai

gosto de caminhar pelo meu bairro
ao final da tarde
sempre encontro o velho Mishima
com seu mesmo boné
e sua lâmina de samurai cravada no ventre
ele permanece vivo
permanecerá vivo eternamente
cutucando a terra do jardim
é sempre desse jeito
uma tarde depois da outra
elas não falham
assim como não falha o demorado banho
da garota Mitsue
acredito que ela tire a roupa
diariamente às 18 e 32
no exato momento em que o sol nascente
se descompõe
ela está lá
nua
sonhando sob o jorro transparente
ontem me deparei com Kawabata
dissertando longamente sobre a sagacidade humana
ou seria sobre o desejo humano?
já não lembro mais
ando lentamente pelas ruelas do bairro
meus pés cansam
meus pés estão cansados agora
sento no mesmo banco sob a cerejeira todas as tardes
enquanto o sol nascente se descompõe
lerdo mas inteiro
o sol
como se fosse um haiku escrito em vermelho
vermelho de dar medo
já não tenho mais medo
o amigo Akira me ensinou a sentar aqui
sem sentir medo
aspirando o vapor da cerejeira
e a olhar esse mesmo Pacífico
que amanhã
ou depois
me abraçará
infância

cada vez mais a geografia se embaralha
à minha frente

antes
eu contornava este mesmo mapa
com meu dedo indicador
a américa do sul
tinha cor de orvalho
e era sempre de tarde
é impossível esquecer
que havia um cemitério marinho
adormecido
no ventre da cordilheira
havia também uma plantação de crianças
que era uma lavoura tão extensa
que alcançava a floresta e ia entrando
entrando
até o meio da amazônia
sei
que cansei de ver cavalos selvagens
atirando-se
desde um promontório
ao sul
até o fundo do atlântico
as cores dos cavalos variavam
de acordo com as tardes
se chovesse eram nublados
se trovejasse eram tordilhos
e quando a neve caía
eles eram de todas as cores
havia um cavalo alazão
que galopava
na hora do entardecer
por todo o interior do país
depois então ele escurecia
escurecia
e disparava
lá pra dentro da noite
Abaddón

infinitamente mucho pero infinitamente poco
escreveu
Sábato
em algum momento
de sua vida
deve ter sido
na Buenos Aires
no início dos anos 70
do último século
Marcelo foi morto
sob tortura
sem abrir a boca
Nacho vigiava
sua irmã
por toda a cidade
sabia com quem ela andava
e voltava pra casa
vazio
com as mãos enfiadas nos bolsos
El loco
viu o dragão de sete cabeças
soltando fogo
pelas ventas
só ele viu
Confesso
que
não entendi bem
voltei a ler
a mesma passagem
era uma verdade
literal
inscrita
logo nas primeiras páginas
do livro
Pensei em deus pela primeira vez
depois de anos
foi então
que meu sofrimento
começou
obras completas

Tomo como medida
a noite de sábado
ou o princípio de tudo
que de fato se deu
na tarde de sábado:
tratei de escancarar
o guarda-roupas
e olhar peça por peça
O frio finalmente chegara
Recordei assim
o que se passou nos últimos 40 anos
Aos meus olhos
vieram todos os invernos de uma vida
E o tempo parado em meu quarto
como um cabide vazio
Pois então
colhi um velho casaco
bem pesado
próprio para os dias
próprio para as noites
dos trópicos
quando o frio se aproxima
com triste violência
Devo admitir
que estive aquecido
completamente aquecido
apesar da condição
de sobrevivente
único
das ruas

Naquelas circunstâncias
trancar a porta da casa
e abandonar-me pela cidade
foi como fechar um livro
com minhas obras completas
maio, 2011

dizem
que a dor também embebeda
maio então foi o mês
da embriaguez
choveu em muitos lugares
vi um deserto alagado
chorei tanto
que me dividi em vários mares
sei que houve um encantamento
mas ele vinha disfarçado
e voava
todo encantamento voa
ao nosso redor
disfarçado de ar e de falta de ar
disfarçado
sem nome sem rosto sem corpo
e a dor
sim
a dor
vinha inteira
de todos os lados
uma parte de mim resistia
sonhava
dormia
acordava
voltava a sonhar
acordada
parte de mim
penava
outra resistia
foi assim
numa certa manhã desisti
então orei
uma prece tão antiga quanto a própria dor
telefone ocupado

Estou fora do ar
isto é
quando o ar existe
Sei que não penso
através das palavras
é uma outra algazarra
são como canções
internas
tão internas
outras vezes são como marteladas
só minhas
no centro
entre os ouvidos
Finalmente sigo em direção ao velho
sentado no parque
Tento outra vez
e mais uma vez ainda:
telefone ocupado
Sento ao seu lado
velho amigo
querido poeta
ele traz mínimos pássaros presos
com alfinetes
à fita do chapéu
Esta é uma tarde dourada
outra vez
e há o azul em todos os cantos
Penso
entre marteladas
numa viagem
até o arquipélago das Aleutas
Fito seus olhos
cegos
finalmente pergunto:
haverá tempo ainda?
instrução para cegos

então ele diz
que só há tempo para a candura
esteja eu aonde estiver
ele me conta do avião monomotor
sobrevoando o Alaska
ele me conta do avião partido pelo vento
ao sobrevoar o Alaska
a carga perdida de mantimentos
e sua caminhada solitária
por três dias e duas noites
de volta à aldeia esquimó
então ele diz
que jamais estaremos sozinhos
que somos todos
todos
somos todos
ele percebe minhas lágrimas
velho amigo
querido poeta
você que perdeu os olhos
pra poder enxergar
ah que tarde dourada
há o azul por todos os cantos
ele diz que há tempo ainda
que sempre haverá
então eu me despeço
de seus pássaros
e volto a caminhar
eu e meu último cigarro

como poderia esquecer
Hart
Crane
eu estava lá
naquele navio
encostado na amurada
fumando meu último cigarro
esquecido do mar
eu que deveria prever
seu salto definitivo
eu e meu último cigarro
tropeçando nas ruas de Havana
com uma garrafa bêbada
numa das mãos
como um barco bêbado
abraçando
as praias
foi quando os garotos entraram
pela cidade
barbudos
festejando
um futuro que nunca viria
quem sabe na Sibéria
eu e meu último cigarro
resgatando os poetas
aprisionados
e quase nos perdemos
eu e meu último cigarro
aquilo era tão
claro
tão
branco
deve ser assim mesmo
o esquecimento
algo claro
na penumbra
espiralando
esse tempo que nunca chega
uma espécie de paz
perdida
no ar
eu estava lá
todos sabem do meu destino
fui eu que fechei o gás
para o Torquato
eu e meu último cigarro
amparando sua queda
Ana
eu que sempre me repito
eu que sequer sei rezar
mas
não há mesmo muito mais do que falar
então
estamos quietos
aqui
eu
meu último cigarro
e o vento frio
dobrando a esquina
eu estava lá
Dadii
eu e sua foto
no bolso
e o amor
na ponta dos dedos
tocando seu rosto
em Ouro Preto
Silvia
até Mariana
naquele trem
o seu riso inesquecível
voando
com o apito
nós ainda estávamos vivos
Paulo
em 1911
acho que em Pequim
sim
Sérgio
têm vezes que eu pressinto
a perda
irremediável
eu
e
meu
último
cigarro
queridos amigos